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quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Arrastando Tudo para a Ruína

Götz Eisenberg*

2007

Violência juvenil, vandalismo, amok¹. Há uma relação entre o mercado desenfreado e o aumento da violência extrema?


 

    No passado, diz um texto de Jean-Paul Sartre, de 1960, crianças de classe média rebeldes ou mesmo apenas infelizes de repente diziam “merda” aos pais, levantavam-se da mesa de jantar, saíam de casa e “iam de malas prontas para a esquerda”. Ali seu mal-estar difuso encontrava seus conceitos e códigos estratégicos. A raiva construída em processos violentos de socialização e sua “repulsa existencial” pelas formas de relacionamento burguesas e pequeno-burguesas encontraram formas de expressão político-racionais no movimento de protesto. A resistência à etiqueta pequeno-burguesa, a revolta contra formas de renúncia e obediência sem sentido e contra uma moral sexual rígida fundiram-se com a luta contra a exploração e a opressão em seu próprio país e com movimentos de libertação no Terceiro Mundo.

    A esquerda radical, posso dizer por experiência própria, foi também um lugar que reunia todos os tipos de figuras estranhas que traziam consigo suas idiossincrasias psicológicas e seus danos biográficos e em parte também agiam em conformidade com eles. Na maioria dos casos, o grupo e as ideias que os sustentavam atuavam para corrigir isso, garantindo que as ilusões privadas dos indivíduos não dessem o tom e mantendo a ligação entre violência e razão, meios e fins.

    Mas o que os jovens devem fazer, perguntava Sartre na época, “se seus pais são de esquerda”, têm Marx e Marcuse em suas prateleiras e escutam Rolling Stones e Bob Dylan à noite, após o trabalho? E se não houver mais nenhuma esquerda radical a qual se juntar? Então, ou a direita se apropria de todo o material bruto das energias rebeldes e das experiências de sofrimento para invertê-las de acordo com seus próprios objetivos, ou ela permanece ociosa.

Utopias vitais

    As utopias podem ter pouco significado para adultos adequados à realidade, mas para crianças e jovens elas são vitais. Crianças e jovens privados de ideais sociais e históricos não são apenas prejudicados em seu crescimento, mas também desmotivados em suas atitudes diante da vida e empurrados para sentimentos substitutos. A violência difusa, o ataque rebelde contra as restrições que determinam a ordem vigente, pode ser, segundo Oskar Negt, “a expressão de uma força vital que carece de ideais sociais”. Os movimentos de busca da juventude não vão a lugar algum, a raiva gira em círculos, voltando-se contra si mesma ou é descarregada em qualquer direção. O vandalismo e o amok florescem por trás das fachadas neoliberais bem ordenadas e cintilantes.

    No isolamento social, onde os indivíduos são deixados à sua própria sorte, o caminho para a construção coletiva de novas formas de vida não burguesas que tenham em conta suas próprias necessidades é barrado e trancado. O vandalismo pode ser entendido como uma resposta à incapacidade de seus atores de canalizar a raiva em uma direção produtiva e racional, como acontecia, por exemplo, nos movimentos políticos. A agressão permanece crua. Cegos e inconscientes, aqueles que caíram e foram declarados supérfluos golpeiam a fachada social. A fúria dos vândalos se limita à tentativa de atacar com um taco de beisebol o nevoeiro que paira sobre as circunstâncias e bloqueia a visão de suas estruturas. O que chamamos de vandalismo é uma raiva que, ao perder seu objeto, se transforma em um ódio que flutua livremente.

    A dominação no capitalismo tardio tornou-se despersonalizada e anônima; ela se disfarça cada vez mais perfeitamente como tecnologia e aparece às pessoas como a chamada necessidade (Sachzwang). Contra quem ou o que deve se voltar a raiva reprimida? Quem podemos responsabilizar? Quem é o culpado pelo nosso mal-estar difuso e pela nossa miséria? Jean Baudrillard, recentemente falecido, disse: “se a violência surge da opressão, o ódio surge do esvaziamento”.

    O irmão grande e necrófilo do vândalo é aquele que mata indiscriminadamente (Amokläufer). Aqui eu discordo categorialmente de Mark Ames que, após o massacre na Virginia Tech, argumentou em entrevista ao Freitag (edição 17/2007) que o amok é uma forma contemporânea de revolta e resistência, uma espécie de “rebelião escrava do século XXI”. Segundo Mark Ames, as razões dos massacres aleatórios não estão na estrutura de personalidade dos perpetradores, nem nos jogos de computador ou na falta de valores cristãos. Eles devem ser encontrados onde os massacres acontecem: em nossos escritórios e em nossas escolas. A riqueza está concentrada em poucas mãos, os patrões ganham muitas vezes mais do que um empregado. “As pessoas estão sendo cada vez mais espremidas – por que não revidariam?”.

    É claro, mas será que revidar significa voltar ao seu local de trabalho atual ou perdido e atirar nos seus (antigos) colegas? Se você sofre com escolas inóspitas e com a pressão do desempenho, se está se sentindo marginalizado e cercado de “idiotas”, então precisa abrir fogo contra seus colegas e professores? A única coisa que jovens como Klebold e Harris, os atiradores da Columbine High School, perto de Littleton, têm é ódio sem sujeito, para o qual todas as verbalizações – de Hitler a “assholes“ ou qualquer outra – são apenas cifras.

Declínio social

    O massacre é realmente, como diz Ames, “um modelo de como se defender”, ou não seria, antes, a expressão do fato de que as pessoas carecem de modelos de solidariedade para se defender? Quando as sociedades perdem sua capacidade de integração social, seus suportes e instituições se desintegram, seus valores e normas se corroem e não são mais compartilhados por muitos, então, junto com o medo, também são liberadas as formas de agressão, hostilidade e violência. Estas precisam urgentemente de controle intelectual e moral e devem ser conduzidas em uma direção esclarecida, pois, caso contrário, desencadearão potenciais destrutivos inimagináveis que poderiam arruinar não apenas esta sociedade, mas qualquer sociedade. O amok não é, portanto, um ato de resistência, mas um sintoma da autodestruição da sociedade burguesa tardia e da correspondente falta de grupos sociais e estratégias que poderiam dar a essa desintegração uma guinada emancipatória.

    No sentido do etnopsicanalista George Devereux, pode-se até perguntar se o “amok”, originário do sudeste asiático, não está se estabelecendo como um “modelo de comportamento anormal” nas metrópoles capitalistas do Ocidente. Para Devereux, cada cultura fornece a seus membros modelos segundo os quais os estados de excitação e de tensão podem ser descarregados sem que o sistema como um todo seja questionado. Assim como o “duelo pela honra” surgiu na França e na Itália no início do século XVI, que ditava a um nobre precisamente quando ele era obrigado a desafiar alguém e como seria a escolha das armas, assim parece que sob nossos olhos o School Shooting e os massacres estão se estabelecendo como uma horrível “válvula de escape” para homens (jovens) gravemente ofendidos ou que sofreram um trauma pesado e sentem seu orgulho ferido e, portanto, “odeiam”.

    Mas mesmo que o massacre viesse a se tornar um “modelo de comportamento anormal”, devemos ter cuidado para não falar de resistência às condições sociais vigentes no contexto de violência cega e assassinato em massa. Aqui se exige discernimento de nossa parte, à esquerda, e devemos insistir que toda ação que vise a libertação deve refletir sobre a adequação dos meios em relação ao fim a ser alcançado. Há formas de violência que nem mesmo uma situação revolucionária poderia justificar, porque negam o próprio objetivo para o qual se supõe que a revolução seja um meio: a ampliação da margem de liberdade humana e das possibilidades de felicidade. Tais são a violência aleatória, a crueldade e o terror cego e indiscriminado.

Antítese do revolucionário

    O ato vândalo de quebrar cabines telefônicas ou incendiar carros ainda pode conter traços de uma “intenção de fazer a coisa certa” (Georg Lukács) e pode ser integrado em uma perspectiva histórica e política. Em todos os aspectos fundamentais, a ação do amok é exatamente o oposto do revolucionário: se este último quer superar os bloqueios históricos e sociais que impedem a melhoria das condições de desenvolvimento dos vivos e do humano, o primeiro se sente mais atraído pelos mortos do que pelos vivos e nisso ele quer converter a vida em morte: “nenhum movimento do lado de fora e internamente nenhum sentimento” (Klaus Theweleit).

    O amok se baseia em um modo de produção mortal e é totalitário na aplicação do princípio da aniquilação. Em última análise, o motivo que impulsiona aquele que mata indiscriminadamente é arrastar tudo para sua grandiosa queda encenada sob o feitiço de um narcisismo que se tornou nocivo na primeira infância. “Em vez de esperar”, diz Lothar Baier em seu livro “Sem tempo!” (Keine Zeit) “que o mundo devore a própria vida, ele deve ser devorado em autodestruição, “a fim de que o tempo do mundo coincida com o da vida”.

    Dos 75 tiroteios em escolas documentados em todo o mundo entre 1974 e 2002, 62 ocorreram nos EUA, seguidos pela Alemanha e pelo Canadá, ambos com quatro casos. A violência bélica neo-imperial originada nas metrópoles do capitalismo global atinge de volta as metrópoles na forma de asselvajamento e brutalização das formas de mediação social (Verkehrsformen)? É possível demonstrar a conexão entre fundamentalismo de mercado, disseminação da “cultura do ódio” (Eric J. Hobsbawm) e aumento da violência? O lema “depois de nós, o dilúvio” não se aplica a todos os lugares?

    Em nome do lucro de curto prazo, estruturas sociais que cresceram ao longo de décadas e ofereceram às pessoas uma proteção contra os piores excessos do princípio do capital estão sendo rebaixadas. Há flexibilização, desregulamentação e privatização, os custos são reduzidos sem levar em conta as consequências sociais e ecológicas. Os países altamente desenvolvidos consomem recursos naturais em um ritmo descontrolado. Um capitalismo desmedido e selvagem está prestes a destruir as suas e as nossas condições de existência. Um mundo completamente capitalista provará ser inabitável e disfuncional. Se nós – as pessoas desta geração – falharmos em modificar isso e deter a insanidade do mercado sem freios, corremos o risco de testemunhar um massacre indiscriminado (Amoklaufs) de livre mercado que nos afetará a todos.

Tradução: Marcos Barreira

* Götz Eisenberg trabalhou como psicólogo penitenciário na prisão de Butzbach. Escreveu, entre outros, Amok – Kinder der Kälte. Über die Wurzeln von Wut und Haß. Rowohlt-Taschenbuch-Verlag, Reinbek bei Hamburg 2000 [Filhos de tempos insensíveis. Sobre as raízes da raiva e do ódio]; Gewalt, die aus der Kälte kommt. Amok, Pogrom, Populismus. Psychosozial-Verlag, Gießen 2002 [A violência que vem da frieza: amok, pogrom e populismo]. Colaborou também com a publicação do Grupo Krisis, Fim de turno! Onze investidas contra o trabalho, Krisis (Org), 1999.

(1) Síndrome de Amok é uma síndrome que consiste em uma súbita e espontânea explosão de raiva selvagem, que faz a pessoa afetada atacar e matar indiscriminadamente pessoas e animais que aparecem à sua frente, até que o sujeito se suicide

Fonte: https://utopiasposcapitalistas.com/2023/04/07/arrastando-tudo-para-a-ruina-gotz-eisenberg/

Edição: Página 1917

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