A Propósito das Notas de N. Sukhánov (01)
Lenin
16 e 17 de Janeiro de
1923
Folheei nestes dias as notas de Sukhánov sobre a revolução. O que salta sobretudo à vista é o pedantismo de todos os nossos democratas pequeno-burgueses, bem como de todos os heróis da II Internacional. Sem falar já de que são extraordinariamente covardes e de que mesmo os melhores deles se enchem de reservas quando se trata do menor desvio relativamente ao modelo alemão, sem falar já desta qualidade de todos os democratas pequeno-burgueses, suficientemente manifestada durante toda a revolução, salta à vista a sua servil imitação do passado.
Todos eles se dizem
marxistas, mas entendem o marxismo duma maneira extremamente pedante. Não
compreenderam de modo nenhum aquilo que é decisivo no marxismo: precisamente a
sua dialética revolucionária. Não compreenderam em absoluto nem mesmo as
indicações diretas de Marx, dizendo que nos momentos de revolução é necessária
a máxima flexibilidade (02), e nem sequer notaram, por exemplo, as indicações
de Marx na sua correspondência, referente, se bem me recordo, a 1856, na qual
expressava a esperança de que a guerra camponesa na Alemanha, capaz de criar
uma situação revolucionária, se unisse ao movimento operário (03) — eludem
mesmo esta indicação direta, dando voltas no entorno dela como o gato em volta do
leite quente.
Em toda a sua conduta
revelam-se uns reformistas covardes que temem afastar-se da burguesia e, mais
ainda, romper com ela, e ao mesmo tempo ocultam a sua covardia com a
fraseologia e a jactância mais descarada. Mas, mesmo do ponto de vista puramente
teórico, salta à vista em todos eles a sua plena incapacidade de compreender a
seguinte ideia do marxismo: viram até agora um caminho determinado de
desenvolvimento do capitalismo e da democracia burguesa na Europa Ocidental. E
eis que eles não são capazes de imaginar que este caminho só pode ser
considerado como modelo mutatis mutandis(*), só com algumas correções
(absolutamente insignificantes, do ponto de vista do curso geral da história
universal).
Primeiro — uma revolução
ligada à primeira guerra imperialista mundial. Numa tal revolução deviam
manifestar-se traços novos ou modificados. Precisamente em consequência da
guerra, porque nunca houve no mundo tal guerra em tal situação. Vemos que até
agora a burguesia dos países mais ricos não pode organizar relações burguesas
«normais» depois dessa guerra, enquanto os nossos reformistas, pequenos
burgueses que se armam em revolucionários, consideravam e consideram como um
limite (além disso insuperável) as relações burguesas normais, compreendendo esta "norma" duma maneira extremamente estereotipada e estreita.
Segundo — é-lhes
completamente alheia qualquer ideia de que dentro das leis gerais do
desenvolvimento em toda a história mundial não estão de modo nenhum excluídas,
mas, pelo contrário, pressupõem-se determinadas etapas de desenvolvimento que
apresentam peculiaridades, quer na forma quer na ordem desse desenvolvimento.
Nem sequer lhes passa pela cabeça, por exemplo, que a Rússia, situada na
fronteira entre os países civilizados e os países que pela primeira vez são
arrastados definitivamente por esta guerra para o caminho da civilização, os
países de todo o Oriente, os países não europeus, que a Rússia podia e devia,
por isso, revelar certas peculiaridades, que naturalmente estão na linha geral
do desenvolvimento mundial, mas que distinguem a sua revolução de todas as
revoluções anteriores dos países da Europa Ocidental e que introduzem algumas
inovações parciais ao deslocar-se para os países orientais.
Por exemplo, não pode ser
mais estereotipada a argumentação por eles usada, que aprenderam de memória na
época do desenvolvimento da social-democracia da Europa Ocidental, e que
consiste no fato de que nós não estamos maduros para o socialismo, de que não
existem no nosso país, segundo a expressão de vários "doutos" senhores dentre
eles, as premissas econômicas objetivas para o socialismo. E não passa pela
cabeça de nenhum deles perguntar: não podia um povo que se encontrou numa
situação revolucionária como a que se criou durante a primeira guerra
imperialista, não podia ele, sob a influência da sua situação sem saída,
lançar-se numa luta que lhe abrisse pelo menos algumas possibilidades de
conquistar para si condições que não são de todo habituais para o crescimento
ulterior da civilização?
"A Rússia não atingiu um
nível de desenvolvimento das forças produtivas que torne possível o socialismo." Todos os heróis da II Internacional, e entre eles, naturalmente, Sukhánov, se
comportam como se tivessem descoberto a pólvora. Ruminam esta tese indiscutível
de mil maneiras e parece-lhes que é decisiva para apreciar a nossa revolução.
Mas que fazer, se uma
situação peculiar levou a Rússia, primeiro à guerra imperialista mundial, na
qual intervieram todos os países mais ou menos influentes da Europa Ocidental,
e colocou o seu desenvolvimento no limite das revoluções do Oriente, que estão
a começar e em parte já começaram, em condições que nos permitiram levar à
prática precisamente essa aliança da «guerra camponesa» com o movimento
operário sobre as quais escreveu um "marxista" como Marx em 1856 como uma das
perspectivas possíveis em relação à Prússia?
Que fazer se uma situação
absolutamente sem saída, decuplicando as forças dos operários e camponeses,
abria perante nós a possibilidade de passar de maneira diferente de todos os
outros países da Europa Ocidental criação das premissas fundamentais da
civilização? Alterou-se por isso a linha geral de desenvolvimento da história
universal? Alteraram-se por isso as correlações fundamentais das classes
fundamentais em cada país que se integra e integrou já no curso geral da história
mundial?
Se para criar o
socialismo é necessário um determinado nível de cultura (ainda que ninguém
possa dizer qual é precisamente esse determinado "nível de cultura", pois ele é
diferente em cada um dos Estados da Europa Ocidental), porque é que não podemos
começar primeiro pela conquista, por via revolucionária, das premissas para
esse determinado nível, e já depois, com base no poder operário e camponês e no
regime soviético, pôr-nos em marcha para alcançar os outros povos?
II
Para criar o socialismo, dizeis, é necessária civilização. Muito bem. Mas então, porque não havíamos de criar primeiro no nosso país premissas da civilização como a expulsão dos latifundiários e a expulsão dos capitalistas russos e, depois, iniciar um movimento para o socialismo? Em que livros lestes que semelhantes alterações da ordem histórica habitual são inadmissíveis ou impossíveis?
Lembro que Napoleão escreveu: "On s'engage et puis . . . on voit." Traduzido livremente para russo isto quer dizer: ."Primeiro lançamo-nos no combate sério e depois logo vemos." E nós, em outubro de 1917, iniciamos primeiro o combate sério e depois logo vimos os pormenores do desenvolvimento (do ponto de vista da história universal trata-se indubitavelmente de pormenores), tais como a Paz de Brest ou a NEP, etc. E hoje não há dúvida de que, no fundamental, alcançámos a vitória.
Os nossos Sukhánov, sem falar já daqueles sociais-democratas que estão mais à direita, nem sonham sequer que as revoluções em geral não se podem fazer doutra maneira. Os nossos filisteus europeus não sonham sequer que as futuras revoluções nos países do Oriente, com uma população incomparavelmente mais numerosa e que se diferenciam muito mais pela diversidade das condições sociais, apresentarão sem dúvida mais peculiaridades do que a revolução russa.
Nem é preciso dizer que o
manual redigido segundo Kautsky foi, na sua época, uma coisa muito útil. Mas já
é tempo de renunciar à ideia de que esse manual tinha previsto todas as formas
de desenvolvimento ulterior da história mundial. Àqueles que pensam desse modo
é tempo já de os declarar simplesmente imbecis.
Notas:
(*) "mudando o que deve ser mudado".
(01) O artigo de Lenin Sobre a Nossa Revolução foi escrito a propósito do terceiro e do quarto livros de Notas Sobre a Revolução, do menchevique N. Sukhánov. O artigo foi entregue à redacção do Pravda por N. K. Krúpskaia sem título; o título foi dado pela redação do jornal.
(02) Lenin refere-se aparentemente à caracterização da Comuna de Paris como "uma forma política altamente maleável" na obra de K. Marx A Guerra Civil em França e à apreciação feita por Marx da "flexibilidade dos parisienses" na sua carta a L. Kugelmann de 12 de Abril. In Karl Marx und Friedrich Engels, Ausgewãhlte Scbriften in zwei Bänden, Bd. I, Berlin, 1960, S. 494, e Bd. II, Berlin, 1960, S. 435/436.
(03) Lenin refere-se à
seguinte passagem da carta de K. Marx a F. Engels de 16 de Abril de 1856: "Tudo
na Alemanha dependerá da possibilidade de apoiar a revolução proletária por
qualquer segunda edição da guerra camponesa. Nesse caso, tudo correrá
maravilhosamente." In Karl Marx und Friedrich Engels, Ausgewãhlte Scbriften in
zwei Bänden, Bd. II, Berlin, 1960, S. 425/426.
Edição: Página 1917
Fonte: Obras Escolhidas, 1977, Edições Avante! - Lisboa, Edições Progresso - Moscou.
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