Mário Maestri*
01/2023
Não sabemos ainda qual o centro organizador, os objetivos e a dinâmica precisa da manifestação que resultou na guerrilha brancaleone de 8 de janeiro, domingo, na praça dos Três Poderes em Brasília. Não se tratava de tentativa de assalto ao Palácio de Inverno em pleno verão. Mesmo que a ideia tenha reverberado nas mídias bolsonaristas para galvanizar os soldados verde-amarelos de fim de semana e os amigos de viagem com passagem, estadia e churrasco gordo pagos. Não houve qualquer movimentação nos quartéis-generais que protegiam os acampamentos patrióticos, de onde saíram parte das milícias turísticas. As tropas do Exército ficaram imóveis, mesmo as que deviam ter se movido.
Imagem: Felipe Pereira |
Bagunça e Quebra-Quebra
O despautério não chegou pronto nos em torno de cento e cinquenta ônibus aterrizados em Brasília. Ele foi permitido e impulsionado pela liberação total da Esplanada, sobretudo pela conivência do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha; de seu secretário da Segurança, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, atualmente preso; do coronel Fábio Augusto Vieira, comandante da Polícia Militar do Distrito Federal, também preso; do tenente-coronel major Paulo Fernandes da Hora, investigado, comandante do Batalhão da Guarda Presidencial, com uns mil membros, aquartelado ao lado do Palácio do Planalto.
Apesar de ser conhecida a cáfila de dromedários que viajava em direção a Brasília, a Esplanada foi mantida sob a proteção de dois sentinelas e seis guardas do Batalhão da Guarda Presidencial do major Paulo da Hora, filmado no domingo dificultando a repressão aos vândalos auriverdes. Mas seguem as duas grandes interrogações. Qual foi o possível objetivo inicial da manifestação e qual o núcleo político organizador do movimento, que tudo aponta se ter dado já à margem da direção direta e da vontade de Jair Bolsonaro, que deixa de ser mais e mais a referência central do movimento definido ainda como bolsonarista.
Possíveis objetivos
Podemos pensar em alguns grandes objetivos iniciais do movimento e da liberação das sedes dos três poderes aos manifestantes pelas diversas autoridades responsáveis por sua proteção, no mínimo simpáticas ao bolsonarismo. Jair de Deus Bolsonaro, nas últimas eleições, candidato de facção da direita, da extrema-direita e das forças armadas perdeu as eleições de 30 de outubro e as rédeas da presidência por menos de um por cento dos votos válidos. Ou seja, eleitoralmente, caiu de pé, ainda que pra lá de assustado pelos processos que o esperam. A certeza na vitória aumentou a amargura e a desolação dos derrotados, sobretudo dos que se locupletavam com a administração militar-bolsonarista. A depressão e desorientação pós-eleitoral de milhões de eleitores bolsonaristas cresceu com a prostração, deserção política e fuga de Bolsonaro para os Esteites. Seus alucinados ficaram como baratas tontas.
À sombra dos quartéis-generais do Exército, organizaram-se acampamentos verde-amarelos, com enorme número de oficiais reformados e familiares, sentados em cadeiras de praia e, no Sul, tomando chimarrão, esperando pronunciamento militar que não dava sinais de vida. Esse último reduto do bolsonarismo duro sabia que tinha os dias contados com o início do governo odiado. Uma megamanifestação, em 8 de janeiro, na Esplanada, serviria de cortina de fumaça para encobrir o fim inglório dos acampamentos patrioteiros e o início de novas operações, já como oposição ao governo Lula-Alckmin. Um grande número de manifestantes esperaria que o ato motivasse um pronunciamento militar.
O abandono da Esplanada às moscas teria talvez como objetivo uma ocupação simbólica do Palácio da Alvorada pelo bolsonarismo. O que salvaria a dignidade arranhada do alto comando militar diante de caserna radicalizada, desgostosa com o afastamento direto das sinecuras do governo. E seria prêmio de consolação aos golpistas e oficiais da reserva perplexos com a inação do alto comando. Uma desocupação amiga do Palácio e da Esplanada pelas forças militares convocadas pelo neogoverno, através de uma GLO, que entregasse o Distrito Federal ao Comando Militar do Planalto, afirmaria a impossibilidade da administração Lula-Alckmin de se defender sem a tutela militar-policial, apenas uma semana após a posse. Uma ação que dificultaria a desmilitarização da nova administração.
O golpe jamais foi uma opção
Para o alto comando era difícil explicar para a plebe direitista que as forças armadas haviam sido proibidas de qualquer ação golpista pelos generais de Washington, seus superiores hierárquicos, que promoveram o golpe de 2016 e não querem saber de outro, ainda mais causando tumultos. E que uma intervenção militar direta confrontaria o grande capital nacional e mundial que elegeu Lula-Alckmin e agora cobra pelos serviços prestados. Para não falar da imensa maioria da população do país claramente oposta a um eventual regime militar, como veremos.
Ainda que a intervenção seja o sonho de consumo do núcleo duro de oficiais, de empresários urbanos e rurais e da extrema-direita nacional e internacional golpista, o alto comando das forças armadas teve que se apartar totalmente da ideia de intervenção militar e controle direto do governo e do poder como solução política. O bom comportamento da oposição colaboracionista desde agosto de 2016, os desmandos bolsonaristas desnecessários, a disposição de Lula-Alckmin de institucionalizar as reformas golpistas tornaram o candidato petista em cavalo do comissário do grande capital e do imperialismo. Ao alto comando militar não restava senão tirar seu bagual da cancha reta.
O espectro de Bolsonaro como o chupa-cabra fascista serviu para que a oposição colaboracionista e organizações reivindicando-se do marxismo engolissem a seco a aliança e o programa da direita democrática, com o abandono programático total do mundo do trabalho. Se Bolsonaro tivesse vencido o pleito, possivelmente seguiria em sua truculência e incorporação orgânica das forças armadas às instâncias do Estado. Seria, porém, um governo em viés mais controlado, já assumido na administração passada com o defenestramento de seus gurus e ministros ideológicos – Olavo de Carvalho, Ernesto Araújo, Ricardo Salles, etc. Entretanto, as relações de Bolsonaro com Trump desagradavam também a administração Biden, em duro confronto com os republicanos e interessada em incorporar uma administração Lula-Alckmin à sua atual campanha internacional.
A Realidade é mais Rica que a Ficção
Para o bem e para o mal, o enorme quebra-quebra de 8 de janeiro deu uma nova qualidade à manifestação, que poderia ter se limitado a um repeteco do sucesso de massa de 7 de setembro de 2022, que se anunciou como o fim dos tempos e se concluiu apenas como um grande comício eleitoral e um pedido de desculpas de Bolsonaro ao ministro Alexandre de Moraes, o dito Xandão. A manifestação de domingo não deve impressionar pela magnitude. Não foi nenhuma marcha de legiões rebeldes atravessando o Rubicão constitucional em direção à Roma tupiniquim.
Se de cada um dos 26 estados do país partissem dez ônibus repletos, já teríamos treze mil manifestantes. O Brasil tem mais de cinco mil e quinhentos municípios! Três manifestantes por município excederiam de longe os presentes. Qualquer convescote evangélico ou show internacional de música multiplicariam por dez os bagunceiros do 8 deste mês reunidos na capital federal. A concentração dos direitistas raivosos não exigiu também grandes recursos. Mas, o que interessa é que o vandalismo desenfreado foi um tiro no pé da extrema-direita, que respingou fortemente no alto comando militar, que procurava aquecer suas mãos no fogo alheio.
O ataque enfurecido ao Alvorada, ao Congresso Nacional e ao Superior Tribunal Federal foi rejeitado por 78,8% e apoiado por apenas 18,4% dos consultados no dia 10 pela Pesquisa Atlas. A rejeição penetrou, portanto, o próprio eleitorado de Bolsonaro no pleito passado. Entretanto, 38% dos consultados consideraram a invasão justificada “em parte”, o que registra a enorme rejeição aos ditos “poderes constituídos” do país, muito forte não apenas entre os bolsonaristas.
Na pesquisa da Atlas, praticamente 40% dos consultados seguem não acreditando que a chapa Lula-Alckmin tenha vencido legalmente o pleito. E quase 37% apoiariam intervenção militar para invalidar as eleições e realizar uma outra. Mas, em sentido contrário a essa declaração, apenas 9,5% seriam favoráveis a uma ditadura militar. Um verdadeiro veto nacional a um golpe militar. O forte apoio à crença em fraude nas eleições registra que se mantém substancialmente a passada polarização eleitoral. Não contando, portanto, a administração Lula-Alckmin com a tradicional boa vontade aos governos em seus primeiros tempos. Questão que necessita ser interpretada pertinentemente.
Todos contra o Golpismo
Os manifestantes-baderneiros do 8 de janeiro realizaram um erro monumental. Atacaram os três poderes, não limitando a invasão e o quebra-quebra ao palácio presidencial, a nova residência de Lula da Silva, acusado com a família, à exaustão, no passado recente, pela grande mídia e, ainda hoje, pelas listas de direita como ladrão-mor da história do país. Um tal comportamento expressou a enorme repulsa da direita extremada e golpista, que almeja instituições ditatoriais, assim como o literal nojo de enorme parte da população, indignada com os privilégios e falcatruas dos representantes dos ditos poderes constituídos, príncipes de uma nação de população maltratada e explorada.
O STF e o Parlamento, sentindo-se atacados, ofendidos e desrespeitados, fecharam fileiras em torno do governo petista, ainda que temporariamente e com algumas restrições, que já são veiculadas na grande imprensa. Foi também enorme a solidariedade internacional contra o que se acreditou ser tentativa de golpe, no dia 8, sobretudo por parte da Europa. Até o governo da neofascista italiana rejeitou o desplante dos bolsonaristas com as instituições, certamente temendo algo semelhante na antiga sede imperial do mundo. A Europa do capital se ressente e teme a crescente rejeição de importantes facções dos trabalhadores e da população dos partidos tradicionais da esquerda europeia, convertidos ao social-liberalismo. Trabalhadores e populares em migração para partidos populistas, que retomam muitas de suas reivindicações em um viés direitista.
A extrema-direita brasileira sentiu fortemente as sequelas da megacelebração e exposição dominical de seus mais baixos instintos, ação definida em forma exagerada e oportunista pela grande imprensa como terrorismo, em que foi seguida pelo colaboracionismo agora no poder e por não poucas organizações ditas socialistas. A qualificação de ocupação de prédios públicos com alguma depredação como terrorismo será utilizada certamente nos próximos meses contra o movimento social e o mundo do trabalho. Os bolsonaristas e a extrema-direita envolvidos nos sucessos de 8 de janeiro sofrem com os ataques fortíssimos da mídia sem sequer uma defesa direta, nem mesmo de seus porta-vozes mais extremados. Estes últimos colocam as barbas momentaneamente de molho, pois temem seguir o caminho dos milhares de manifestantes presos, que começam a ser apresentados à Justiça.
O ensaio de recuperar o espaço perdido nos despautérios de Brasília com manifestações portentosas nas grandes capitais, mais fáceis de serem realizadas, chamadas para o dia 10 de janeiro, morreu na casca do ovo, sob a ameaça de repressão e de condenação ao fogo eterno pelo super-Xandão, investido pelo STF de vingador das ofensas à ordem democrático-burguesa nacional. A proibição de manifestações de direita que interrompam as ruas atinge também em cheio o movimento social. O bolsonarismo simplesmente recolheu a viola e a empáfia tradicional e foi lamber as feridas em casa. Na fronteira Sul do Brasil, granjeiros direitistas, que botaram a mão no bolso para financiar alguns ônibus ou atos ainda mais graves, desapareceram das cidades e foram enfurnar-se em suas propriedades rurais. Repetiram, às centenas, em suas calças, o feito grotesco do manifestante alucinado em tapete do STF.
Uma questão política
Os sucessos de 8 de janeiro não oportunizam, como muitos governistas propõem, a desorganização permanente de facções importantes da extrema-direita. A forte rejeição ao quebra-quebra, que não teria ampliado o apoio ao governo petista-direitista, registrou, igualmente, abismal fragilidade da administração Lula-Alckmin na manutenção da ordem, mesmo no coração simbólico do poder republicano. Uma incompetência mastodôntica que não pode ser desculpada por inexperiência governamental ou por ação inesperada. Inexperiência não há. Esta é a terceira administração presidencial de Lula da Silva e a quinta petista. E surpresa não houve. Havia dias em que se anunciava que milhares de manifestantes de todo o país marcavam rendez-vous barulhento na Praça dos Três Poderes.
A inoperância da nova administração joga água fria na fervura da organizada badalação, já iniciada, que se seguiria à subida da rampa. E sua origem política é clara. A ineficiência abismal da administração Lula-Alckmin tem suas origens nas propostas de ação governamental e no bloco político-social sobre o qual se construiu a chapa vitoriosa. Desde 2016, o PT e seus puxadinhos empreenderam colaboracionismo deslavado com o golpismo, jamais realmente combatido, propondo-se apenas como o melhor governo para a institucionalização de suas iniciativas estruturais, em contexto de maior civilidade para com as ditas instituições, opostas estruturalmente aos interesses nacionais, populares e do mundo do trabalho.
Para tal, era imperativo que o petismo e anexos impulsionassem, como fizeram ininterruptamente, a desmobilização permanente de todas as expressões do movimento social. O que, a bem da verdade, continuava operação desenvolvida durante toda a era presidencial petista e, mesmo, antes dela. A campanha eleitoral deu-se pautada em alianças constitutivas com representantes do grande capital nacional e internacional e o imperialismo. E sempre preocupada em frustrar as mobilizações sociais e a expressão das necessidades da população e do mundo do trabalho.
Durante a campanha e após a vitória, negou-se repetidamente qualquer intenção de revogar os ataques gerais do golpismo contra os trabalhadores, contra a população e contra a nação. Deixou-se claro que não haveria “revogaço”. O que havia sido perdido, para o capital e o imperialismo, de bens nacionais e de direitos dos trabalhadores e da população, perdido estava. Posição já assumida em 2002, após os oito anos de governo de FHC, e, agora, retomada em situação ainda mais crítica. Desta vez, a história promete se repetir, não como farsa, mas como exacerbação patológica.
Enorme parcela da própria esquerda que se diz marxista dobrou o joelho diante do altar eleitoral do capital, justificando-se com a pretensa necessidade de combater o mal maior, o nazifascista Jair Bolsonaro, hoje balão furado. Tudo sob a proposta retórica de derrotar Bolsonaro nas eleições e o bolsonarismo nas ruas. E, como era de esperar, após o ajantarado eleitoral vencido pelo colaboracionismo em 30 de outubro, chegou, em primeiro de janeiro, a hora de a nova administração pagar a nota salgada. Em cumprimento de seus compromissos, o novo governo entregou o centro de imposição da repressão institucional a três colaboracionistas desfibrados, que pecaram gravemente no dia 8. Dois por inoperância e um por deslavada colaboração com o inimigo.
Quem controlava as armas
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, com autoridade plena sobre a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, que bons serviços prestaram à administração golpista, foi entregue a Flávio Dino, um colaboracionista incompetente que, antes da posse, já escorregava em todas as cascas de banana com que se deparava. O Gabinete de Segurança Institucional coube a homem de confiança de Lula, um oficial de pijama e de gabinete, o general Gonçalves Dias, com autoridade sobre o esquema de informação-defesa do presidente e do Planalto, com destaque para a Agência Brasileira de Inteligência. Ele ocupou a sala do general Augusto Heleno, proposto por muitos direitistas como direção substituta após a deserção do Führer de botequim. O cúmulo da sede de acomodação com a direita militar e golpista foi a escolha, por Lula da Silva, de José Múcio Monteiro, um filogolpista, para ministro da Defesa. Escolha prontamente aplaudida pelo general Mourão.
Respeitoso das hierarquias republicanas, Flavio Dino confiou o controle da esperada manifestação ao governador do Distrito Federal, conhecido bolsonarista. Isso porque cumprira seu papel institucional na posse do governo entrante, dias antes. Deixou um vampiro na guarda de banco de sangue. Ainda no domingo à tarde, Dino propunha que tudo estava na santa paz do senhor. Gonçalves Dias, o senhor das informações, fez ainda pior. No sábado, propôs também nada de novo no front, quando os serviços sob seu comando apontavam em direção contrária. E dispensou guardas da Esplanada e dos prédios icônicos. Ambos seguiam na orientação de confiança na neutralidade das instituições e de seus representantes e de lenta, gradual e segura substituição, sobretudo dos militares golpistas, em seus respectivos ministérios. Isso contando com dois longos meses para escolher quem nomear e quem afastar. Tempo gasto nas badaladas “Comissões de transição”. Sequer a direção da Empresa Brasileira de Comunicações havia sido trocada antes do despelote do domingo em Brasília.
A cereja do bolo foi a designação de José Múcio Monteiro. A escolha foi apresentada, pelos puxa-sacos de sempre, como genial decisão de Lula da Silva para ter um negociador junto ao alto comando militar. Na ocasião, Múcio foi definido jocosamente como ministro dos militares junto ao novo governo. E assumiu desde sua indicação essa função. No frigir dos ovos, tratou-se de submissão respeitosa do neopresidente aos militares golpistas. A leniência presidencial com o golpismo prosseguiu com a designação por antiguidade dos comandantes das três armas, todos envolvidos no golpe de 2016 e nos governos que se seguiram. Lula da Silva perdeu a oportunidade de avançar a autoridade civil sobre a militar e rejuvenescer profundamente o alto comando das forças armadas. Uma tal decisão contaria com a indignação dos oficiais enviados para o armário e o apoio irrestrito dos promovidos no comando das tropas. Uma fratura generacional nas forças armadas golpistas que levaria algum tempo para ser soldada.
Múcio manobrou insistentemente para que não se ordenasse ao Exército o desalojamento dos acampamentos golpistas em áreas de proteção militar, sobretudo o do Quartel-General do Distrito Federal. Definiu-os como direito democrático de expressão e como povoados por senhores e senhoras inofensivos, dentre os quais muitos oficiais da reserva, seus queridos amigos. No domingo, quando a Polícia Militar tentou proceder à dissolução daquele acampamento, ele foi defendido por dois blindados e tropas do Exército, em teoria sob a autoridade de Múcio. No mesmo dia, à noite, o dito ministro da Defesa abraçou já sem restrições um viés de desqualificação do governo. Propôs que Lula da Silva emitisse uma Garantia da Lei e da Ordem, GLO, entregando ao Comando Militar do Planalto o restabelecimento geral da ordem no Distrito Federal. A proposta de inspiração castrense indignou o neopresidente. Ela facilitaria um golpe, se ele estivesse em marcha, ou colocaria as forças armadas como a instituição mediadora das crises nacionais, como proposto pela visão aristocrática e bonapartista militar. O Comando Militar do Exército e o próprio general Júlio Cesar de Arruda, atual comandante do Exército, teriam expressado a inconformidade com o presidente por não se servir de uma GLO.
E, mesmo após a casa ser arrombada, não houve – e não está havendo – preocupação em colocar trancas nas portas. Flávio Dino, G. Gonçalves e Múcio foram reafirmados em seus nichos do poder, onde fracassaram por inoperantes ou mantiveram posições mais do que dúbias. Foram afastados em torno de cinquenta militares designados por Bolsonaro para posições próximas da Presidência, medida que já sofre a oposição do alto comando militar. E propõe-se, apenas, acelerar a demissão dos bolsonaristas ditos raiz, determinação que será realizada nos ministérios petistas. Nos demais, não raro sob a direção de partidos que apoiaram o golpe de 2016, essa orientação será sabotada, onde for possível. Apesar da oportunidade propiciada pelos acontecimentos de 8 de janeiro, não há proposta de rápida demissão dos milhares de militares incrustados na administração federal. A única tendência a favorecer uma limpeza mais geral de oficiais bolsonaristas será a fome insaciável pela ocupação de seus postos pelos apoiadores de primeira, segunda e derradeira hora da nova administração. E Lula da Silva já se reuniu, no dia 20, com os comandantes militares para receber as reivindicações relativas aos projetos estratégicos das respectivas armas, em esforço de melhorar as relações com as forças armadas.
As instituições nos salvarão
Toda a repressão às autoridades responsáveis e aos bolsonaristas baderneiros do 8 de janeiro foi deixada para as instituições judiciárias burguesas, com destaque para o STF, onde, mais uma vez, o grande protagonista foi Alexandre de Morais, super-Xandão. Lula interveio na Segurança Pública do Distrito Federal, afastando seu secretário de segurança pública, Anderson Torres, que a seguir foi preso. O governador do Distrito Federal, Ibaneiz Rocha, foi afastado por 90 dias em decisão do STF. Ambos eram os maiores responsáveis pela guarda da Esplanada e dos prédios icônicos. Essas medidas impuseram a normalidade em poucas horas, registrando o caráter não estrutural do movimento. O super-Xandão ordenou peremptória dissolução dos acampamentos, a acusação dos presos em flagrante delito, a repressão à tentativa de manifestações no dia 10, a proibição de manifestação que interrompa a circulação, como vimos. Lula da Silva tem se desdobrado em elogios ao funcionamento dos poderes institucionalizados, com destaque para o STF, para o Congresso, para o Senado. Os mais diversos sabores dos atuais colaboracionistas quase quebram as costas, curvando-se extasiados diante das instituições. As mesmas que botaram abaixo o governo de Dilma Rousseff e viabilizaram o golpe de 2016.
Em verdade, o governo Lula-Alckmin podia ter feito um pouco mais, mas não muito, em razão de sua natureza profunda. Trata-se de administração sem um efetivo apoio na população, com destaque para os trabalhadores e assalariados, que praticamente não ocorreram às manifestações de repúdio convocadas – sem maior organização, como sempre – para o dia 9, segunda-feira. Em algumas capitais, reuniram-se, ao máximo, dois ou três milhares de manifestantes, muito menos que o povaréu sempre presente em enterros de cantores ou artistas de segunda linha. Ao enterro de Pelé ocorreram mais de cem mil populares. Nenhuma fábrica interrompeu o trabalho em protesto ao que foi definido como tentativa de golpe. E muito menos as centrais sindicais, sempre temerosas da autonomia dos trabalhadores, propuseram qualquer ação nesse sentido.
As razões do imobilismo do governo Lula-Alckmin estão em seu DNA, como proposto. Ele se comprometeu com o grande capital, foi sustentado e venceu as eleições apoiado por ele, pelo imperialismo, pelas classes médias petistas e assemelhadas, por aqueles que votariam em uma lata de lixo para se livrar de Bolsonaro. O governo pretende avançar em conformidade aos seus compromissos e, portanto, às exigências e necessidades de sua base de sustentação, sobretudo aquelas que realmente importam – o grande capital e o imperialismo. E não pode fazer de modo diverso. É a natureza do escorpião.
As medidas iniciais de impacto da nova administração, despidas de qualquer pathos social, foram direcionadas sobretudo para as exigências do imperialismo estadunidense e europeu e das classes médias, que seguem disciplinadas às políticas identitárias e ambientais como salvação do globo terrestre, a nau onde todos navegaríamos. Políticas impulsionadas pelo Partido Democrata estadunidense após ter abandonado sua antiga base eleitoral histórica, as classes operárias brancas e negras, em favor da globalização desenfreada, quando dos governos de Bill Clinton. A “subida da rampa”, que motivou delírios orgásticos nas filas das classes médias, foi magnífico registro plástico dessa orientação identitária.
Rosângela da Silva, a Janja, a “primeira-dama-identitária” do governo apenas empossado, em forte euforia protagonista, tem indicado ministros e já posou para a capa e ensaio fotográfico da revista Vogue, vestida no estilo chic-sustentável. Ela teria sido a articuladora geral da “subida” com personagens representativas dos segmentos sociais que lhe seriam centrais. Entre eles não havia um petroleiro, eletricitário, pedreiro, motorista, enfermeiro, camponês, comerciário, trabalhador de aplicativo, ou seja, as classes que criam a riqueza da nação e são mantidas à margem dela.
O metalúrgico da “subida”, isolado entre os representantes simbólicos das novas referências sociais identitárias do novo governo, foi sobretudo uma referência ao passado distante do presidente. A “subida” refletiu as expectativas da ação governamental de professores universitários, funcionários públicos, intelectuais, profissionais liberais, setores cada vez mais estranhos e opostos à luta anticapitalista e às necessidades dos trabalhadores, assalariados e explorados. Setores que ainda têm, não raro, muito a perder na presente ordem social.
Nada para o mundo do trabalho
Até agora, foram assinados sobretudo grande número de decretos, instruções, etc. sobre o meio ambiente, em geral anulando as medidas de terra arrasada bolsonaristas, exigência maior e demagógica do imperialismo estadunidense e europeu. Foram paralisadas algumas privatizações, como prometido durante a campanha, ainda que já se proponham as Parcerias Público-Privadas, como um dos objetivos do novo governo para atrair investimento. Prosseguiu-se e estendeu-se em algo o Auxílio Brasil de Bolsonaro, que voltará a se chamar Bolsa Família, para alimentação de uma população miserável mantida sob o cabresto do populismo e na semi-indigência há longas décadas. Sem uma modificação radical na Lei aprovada por administração petista, iniciou-se a reversão de alguns casos do Sigilo dos Cem Anos, revelando-se segredos pífios que nada interessam à grande população.
Não se avançou e não se propôs qualquer medida substantiva em favor da grande população nacional e trabalhadora. Muito pelo contrário. Vimos que se deixou claro que não haveria “revogaço” dos grandes ataques golpistas contra a Previdência e do desmonte da legislação trabalhista e da Justiça do Trabalho. Deixou-se claro que não se poria fim ao arrocho salarial público e privado e que o saque dos bens públicos, através das privatizações, não seria revogado, etc. Silencia-se sobre as multas milionárias impostas a empresas brasileiras públicas e privadas pelo capital estadunidense, ao som da Lava Jato. No máximo, haveria alguns retoques quanto à destruição da legislação trabalhista, em discussões mediadas pelo governo, realizadas entre os empresários e os trabalhadores, os últimos certamente representados pelos burocratas petistas e outros. Os ministros que escorregaram, propondo medidas de interesse da população, foram prontamente desmentidos e ameaçados de irem para o canto da sala, como castigo.
Grande destaque foi feito à nomeação de lideranças identitárias negras de classe média. Entretanto, nenhuma delas, nas concorridas entronizações, lembravam de algumas das reivindicações mais sentidas da população negra pobre, como o fim das “polícias militares”, responsáveis anualmente por infindáveis mortes de trabalhadores e populares, setores em que a população negra está super-representada em muitas das grandes cidades. Não houve a exigência da descriminalização da maconha, que ensejaria a libertação de dezenas de milhares de homens e mulheres aprisionados, em péssimas condições, por participar da venda de baseados no varejo, como forma de sobrevivência. Uma população em grande parte negra. Ambas as medidas já foram vetadas por Flávio Dino, antes de sua entronização, em respeito respectivamente ao aparato militar direitista nacional e aos evangélicos e católicos conservadores. Para não falar da redução, mantendo o salário, da jornada de trabalho para quarenta horas, reivindicação histórica do mundo do trabalho, sempre silenciada em favor do grande, médio e pequeno capital. Quarenta horas de trabalho sancionadas pelo presidente Chavez, na Venezuela, em 2012.
O desprezo cínico do atual governo para com a população trabalhadora e os aposentados materializa-se na atual vacilação em conceder os 18 reais que aumentariam o salário mínimo para 1.320 reais. Haddad, que acaba de propor um pacote fiscal cheio de bondades milionárias para o capital, e se propõe seguir nesse caminho, já anunciou que os 1.302 reais decretados por Bolsonaro já comportariam o aumento do salário mínimo prometido por Lula da Silva. Portanto, não seria necessário o aumento liliputiano de dezoito reais em um salário mínimo que reduz uma enorme parte da população a uma verdadeira escravidão assalariada. A justificativa para a vacilação é que o governo teria que arcar com um maior gasto, em razão da enorme quantidade de aposentados e reformados com um salário mínimo, outra infâmia nacional. Os gastos previstos para o aumento de 18 reais são literalmente mínimos em relação ao orçamento nacional. A discussão constitui demonstração de responsabilidade para com o mercado. No mesmo sentido, começa-se a tergiversar, sob o comando de Haddad, sobre a também prometida atualização da correção do teto do imposto de renda para cinco mil reais, também atacada pela grande imprensa.
Importantes setores populares votaram em Lula-Alckmin, muitos para se livrar de Bolsonaro. Porém, não foram menos os que votaram em Bolsonaro. Sem iniciativas de alto significado do novo governo em favor da população e do mundo do trabalho não haverá superação da atual polarização. Não haverá reversão do processo de alienação em que se encontram enormes setores das classes populares e trabalhadoras. Tais iniciativas são as únicas capazes de retirar credibilidade às fake news direitista. Ao contrário, a adesão conservadora eleitoral poderá conhecer expansão, em caso de crise. Os trabalhadores e assalariados assistiram aos acontecimentos de domingo pela televisão, certamente desgostosos com o quebra-quebra, já que abominam desordeiros e marginais. Mas, como também proposto, não ensaiaram movimento em defesa do governo, nem foram convocados para tal. O atual governo teme mais os trabalhadores mobilizados do que as mobilizações bolsonaristas.
Embretado nas alianças
Ao governo Lula-Alckmin, embretado por suas alianças e programa, de costas para o mundo do trabalho, não resta senão seguir adiante no cumprimento de seus compromissos com o grande capital e o imperialismo, servindo-se de políticas identitárias para encantar os segmentos médios. A Bolsa Família garante dividendos eleitorais, como garantiu ao governo de Bolsonaro. Mas seus beneficiários são de todo refratários à mobilização social, por sua natureza profunda de marginalizados do mundo do trabalho a que são condenados, há anos.
O governo seguirá na obediência aos interesses do capital, já registrada por Haddad, e ao imperialismo, já avançada por Lula da Silva, antes mesmo de ser entronizado, e reafirmada em forma inoportuna pela “Janja”, quando da recepção da posse presidencial, ao se negar a “primeira dama”, sempre em crise de protagonismo, a cumprimentar o enviado do Irã à cerimônia. Mas o apoio do grande capital nacional e internacional será sempre crítico, pois ele sempre quer mais. Sob uma forma mais civilizada e soft, respeitosa das instituições burguesas e das reformas golpista, com pequenas concessões para as classes médias e menores ainda para a população, o governo Lula-Alckmin seguirá, no essencial, nos mesmos trilhos dos dois governos passados. Sempre sob a pressão política, silenciosa ou não, do alto comando das intocadas forças armadas. E não conhecerá a complacência da extrema-direita que o PT e anexos tiveram com o golpismo. Estarão todos à espera de eleição, em 2026, onde talvez Alckmin se confronte com Haddad ou os dois, abraçados, se oponham a alguém ainda mais à direita. Composições impossíveis hoje de prever.
Contudo, se o caldo entornar, se as crises mundiais e nacionais se aprofundarem, se ocorrerem explosões e mobilizações populares e operárias, o governo pode ir para o espaço, abandonado pelo capital e o imperialismo, sem qualquer apoio dos trabalhadores e assalariados, como ocorreu com Dilma Rousseff. E, mais uma vez, seria derrubado, não para depor o petismo do governo, mas para melhor golpear os trabalhadores, os assalariados, a Nação. Nesse e em outros casos, não está afastada a possibilidade de uma radicalização do golpe de 2016, talvez sob um tacão militar mais explícito.
A única solução do terrível impasse em que vivemos encontra-se na mobilização dos trabalhadores, libertando-se do jugo político, social e ideológico no qual é mantido, e na construção de sua centralidade política, através da imposição de seu programa no aqui, no agora, no amanhã – único caminho em direção à emancipação social de todos os oprimidos e humilhados. Se isso não acontecer, no Brasil e no mundo, seguirá o avanço já avassalador da barbárie sobre a civilização como um todo.
*Mário Maestri (28-06-1948, Porto Alegre), após rápida passagem pela escola de engenharia da PUC-RS, estudou história na UFRGS, participou a residência à Ditadura Militar. Foi preso, em 1969, julgado e absolvido por falta de provas, refugiando-se no Chile da Unidad Popular, de 1971 a 1973, onde continuou seus estudos em história no Instituto Pedagógico da Universidade do Chile. Teve como professores, entre outros, o historiador Gabriel Salazar e Hugo Cansino. Militou no MIR chileno, participou da tentativa militar de resistência ao golpe, e, após a consolidação do golpe, da Fracción Disidente del MIR, já refugiado na Bélgica. Após o 11 de setembro de 1973, refugiou-se no México, onde lhe foi negado o direito de asilo, e, a seguir, na Bélgica, onde se graduou e pós-graduou em Ciências Históricas, no "Centre de l'Histoire de l'Afrique" da Universidade Católica de Lovaina, defendendo dissertação de mestrado sobre a África negra pré-colonial e tese de doutoramento sobre a escravidão colonial no Rio Grande do Sul, trabalho pioneiro sobretudo no relativo à resistência do trabalhador escravizado no sul do Brasil. Seu orientador nos dois trabalhos foi o africanista Jean-Luc Vellut. De sua banca examinadora de doutoramento, participou o historiador francês Frederic Mauro (1921-2001).
De volta ao Brasil, em 1977, integrou-se à luta contra a ditadura militar e pelo socialismo, como militante da antiga Convergência Socialista, de 1978-79, e, mais tarde, da ORM-DS, até 02/1982. Participou na base da organização do PT e, do qual se afastou quando de sua orientação social-democrática e a, seguir, social-liberal. Mais tarde, participou da fundação do PSOL, não acompanhando a organização em sua deriva eleitoreira. Em 2017-18, militou na Célula Internacionalista do PCB-RS. Hoje, é comunista sem partido.
Lecionou, entre outras instituições, na FURG, em Rio Grande, de onde foi
afastado por exigência direta de Golbery de Couto e Silva, rio-grandino.
Participou do programa de pós-graduação em História da UFRJ, quando de sua
constituição, e da PUC-RS, na Universidade de Caxias do Sul. de 1988 a 1994.
Lecionou na UFRGS, de onde se demitiu. Trabalhou, até 2018, quando se
aposentou, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo
Fundo (mestrado e doutorado).
Fonte: https://contrapoder.net/
Edição: Página 1917
Nenhum comentário:
Postar um comentário