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sábado, 22 de fevereiro de 2020

Crônicas e Reminiscências

                         Os Invencíveis
    Ney Nunes
   Nos anos sessenta do século passado, Vila Isabel era um bairro em acelerada transformação. A grande fábrica de tecidos da região, Companhia Confiança Industrial, onde meu avô e minhas tias trabalharam por décadas, encerrava as atividades, os bondes deixaram de circular, casarões antigos davam lugar aos edifícios de apartamentos, os armazéns e quitandas encolhiam diante dos supermercados. Mas, com tudo isso, suas ruas ainda eram o espaço para encontros e brincadeiras da criançada do bairro. Na rua Silva Pinto, onde morava, não era diferente, logo após o almoço começávamos a nos reunir nas calçadas, um bando de meninos descalços, de short e sem camisa, sentados junto ao meio fio, onde combinávamos as travessuras do dia.
   As possibilidades eram muitas, sobrava criatividade na molecada, entre elas, a tradicional pelada, as pipas, os carrinhos de rolimã, o jogo de bola de gude, o pique-esconde e as violentas batalhas travadas com a farta munição fornecida pelas muitas oitizeiras que dominavam nossas calçadas. Mesmo com todas essas alternativas, eu e três amigos mais próximos, Julio, Ozires e Darci, todos nós com idade entre 7 e 10 anos, resolvemos empreender mais uma, a ronda pelos quarteirões próximos para descobrir quintais com árvores frutíferas passíveis de serem “visitados”.
   Talvez por ser o mais velho do grupo, fui alçado à condição de líder e para que não sobrassem dúvidas quanto nossa disposição, nos autodenominamos, sem nenhuma modéstia, “Os invencíveis”. Para fazer jus ao nome tratamos de nos organizar para as empreitadas, municiados de atiradeiras, cabos de vassoura ou qualquer pedaço de pau. Fazíamos rondas para identificar possíveis alvos, os quintais com goiabeiras, jabuticabeiras, abacateiros, laranjeiras e mangueiras estavam entre nossos preferidos. Em pouco tempo já tínhamos todos os alvos devidamente mapeados e logo passamos a realizar os ataques furtivos.
   Reunida a guarnição, organizávamos a divisão de tarefas, o vigia, o distraidor de cães e os coletores que escalavam muros e árvores. Muitas vezes, apesar do nome do grupo, éramos obrigados a bater em retirada, pelo alerta do vigia ou da reação mais aguerrida dos moradores e seus vira-latas. Mas não pensem que desistíamos facilmente, passados alguns dias, retornávamos para nova tentativa. Com o tempo fomos acumulando experiência, ficamos cientes das épocas de cada fruta, dos quintais vulneráveis, daqueles guarnecidos por cães dóceis ou intratáveis e etc., nada escapava das nossas atentas observações.
   Decorridos mais de cinquenta anos, essas boas lembranças não se apagaram, um tempo de amizade, companheirismo e descobertas. A infância era pobre de bens materiais, mas rica em experiências e aprendizados. Ficou também na memória o delicioso sabor dessas frutas conquistadas nas investidas heroicas dos “Invencíveis” e uma certeza: goiaba com bicho alimenta e não faz mal.  

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