"A minha preocupação é que caiamos no erro de considerar que o governo Lula será ameaçado 24 horas por dia por um golpe fascista e, portanto, devemos cerrar fileiras com ele. É correto e muito importante lutar contra as tentativas de golpes e ditaduras de ultradireita, marchando em ruas diferentes da burguesia “democrática”. Mas não podemos apoiar um governo de conciliação de classes. Quando Lula é eleito e toma posse, não é um governo de esquerda, é um governo burguês, ainda que social-democrata."
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Ivan Pinheiro homenageado no México pelo PCM. |
Reproduzimos entrevista publicada em 25/01/2023, no El Machete, órgão central do Partido Comunista Mexicano, com Ivan Pinheiro, ex-secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, entre 2005 e 2016.
El Machete (EM): Agradecemos que nos conceda a entrevista, camarada Ivan Pinheiro. O nosso Partido tem um grande reconhecimento pelo processo de Reconstrução Revolucionáriado Partido Comunista Brasileiro (PCB), aliás foi um importante exemplo para termos empreendido o Novo Passo no nosso IV Congresso em 2010. Por favor, fale-nos sobre o contexto em que ocorreu a Reconstrução Revolucionária do PCB e em que consistiu.
Ivan Pinheiro (IP): Entrei no Comité Central do Partido Comunista Brasileiro em 1982. Aquele Congresso foi clandestino, o Partido era ilegal. Eu tinha sido militante de uma organização de luta armada, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, e entrei no Partido em 1974, ainda na ilegalidade.
Comecei a ter divergências com a linha do Comité Central no final dos anos 1970, sobre a questão da Frente Democrática.
Até então, considerava essa política meramente tática. Na fase mais difícil da ditadura, pareceu-me correto, porque o movimento sindical e de massas estava muito fraco, tinha sido muito reprimido e o PCB também tinha sido duramente atingido, com a prisão e o assassinato de muitos militantes do Comité Central que não tinham ido para o exílio.
Mas, no segundo semestre de 1979, a situação sofreu importantes modificações, quando se iniciou um processo a que a ditadura chamou “abertura política lenta, segura e gradual”, com a suavização de algumas leis de exceção e o advento da amnistia política aos perseguidos pelo regime. Nesse período eclodiu um importante movimento operário e sindical no Brasil, vários setores de trabalhadores entraram em greve. Aí, nós que divergíamos da posição do Partido passámos a defender a necessidade de uma inflexão da política de Frente Democrática para a de Frente de Esquerda com as forças de classe que iam surgindo, como era o caso do PT naquela época, que não era o partido reformista de hoje, mas um PT combativo, onde havia algumas correntes que se consideravam socialistas.
No entanto, o PCB continuou em aliança com setores do chamado “centro-democrática” da burguesia durante toda a década de 1980. Alguns camaradas, principalmente entre nós que atuávamos no movimento sindical, começámos a conversar sobre essas questões, e passámos a enfrentar o reformismo em alguns episódios. O Comité Central impunha-nos orientações para que nos opuséssemos às greves, argumentando que eram inoportunas, pois “dificultavam” a tal transição democrática. Nós considerávamos o contrário: greves e lutas de massas abreviavam o fim da ditadura militar, pois as classes dominantes já davam indícios de que era hora de mudar a sua forma de ditadura, desta vez como uma democracia burguesa.
Entre 1982/83, os reformistas, hegemónicos no Comité Central do PCB, impuseram a nossa rutura com a Central Única dos Trabalhadores que estávamos a construir com o PT, porque lhes parecia “esquerdista”. O facto é que a aliança prioritária era com o partido Movimento Democrático Brasileiro – MDB, o partido burguês que encabeçava a Frente Democrática. Não participámos na fundação da CUT e ajudámos a criar outra central, conciliadora e moderada, sob a liderança de sindicalistas burocratas.
Foi toda uma década de luta interna que se foi aprofundando. Eu sempre concordei com as críticas que Prestes apresentou quando saiu do Partido, em 1980, com a “Carta aos Comunistas”. Mas não concordei com sua decisão de sair do Partido, por considerar que ainda havia condições para se travar a luta interna.
Apesar das nossas lutas internas contra o reformismo em vários episódios, no final da década de 1980, os eurocomunistas e burocratas continuavam a ser a maioria no Comité Central. Em julho de 1991, quando já tinha caído o muro de Berlim e a Perestroika avançava, eles tentaram liquidar o Partido, no nosso IX Congresso. Tendo previsto isso, criámos uma tendência interna, que assumimos publicamente. Elaborámos um documento Fomos, somos e seremos comunistas, criámos o Movimento Nacional em Defesa do PCB e fomos ao Congresso já organizados nacionalmente. Por uma pequena margem de votos, conseguimos manter o Partido e nele avançámos, passando de uma minoria de menos de 10%, a ter cerca de um terço no Comité Central.
Apesar disso, poucos dias após a queda da União Soviética, a Comissão Política decidiu realizar uma reunião do Comité Central quinze dias depois, na qual a maioria aprovou a convocação de um Congresso Extraordinário para os dias 25 e 26 de janeiro, em São Paulo, com um único ponto, que era criar uma “nova formação política”, ou seja, liquidar o PCB e criar um partido social-democrata.
Quando se convocou este congresso, imediatamente iniciámos um esforço nacional para tentar eleger a maioria dos delegados. Era uma disputa dura em cada conferência de célula ou Comité Regional. Mas não contávamos com a astúcia dos liquidacionistas, que transformavam os debates das teses, com a presença de não filiados no Partido, em instâncias de eleição de delegados.
Calculamos que, naquele “congresso”, cerca de um terço dos delegados eram de fora do Partido. Assim, desta forma, convocámos um Plenário Nacional do Movimento em Defesa do PCB para dezembro de 1991, na cidade do Rio de Janeiro, onde participaram camaradas de diversos Estados e ali decidimos não reconhecer o congresso fraudulento e realizar, nos mesmos dias, uma Conferência Política Nacional para manter e reorganizar o Partido.
Na manhã do dia 25 de janeiro de 1992, na cidade de São Paulo, reunimos cerca de 400 camaradas na nossa primeira sessão plenária, e então decidimos marchar até o local de reunião dos liquidacionistas, onde exigimos poder falar para explicar as razões pelas quais não reconhecíamos aquele “congresso” e informámos que voltaríamos ao local da nossa reunião para realizar a Conferência Nacional de Organização do PCB, onde emitimos uma declaração política, elegemos um novo Comité Central e convocámos o X Congresso, que realizámos um ano depois.
Começámos ali a reconstrução revolucionária do Partido, que foi errática nos anos 1990, pois, além do impacto da contrarrevolução na URSS, havia entre nós camaradas que também queriam manter o Partido, mas não concordavam com a sua reconstrução revolucionária , objetivo que só desenvolveu efetivamente a partir de 2005 no XIII Congresso, quando aqueles que queriam que continuássemos a apoiar o primeiro governo Lula, iniciado em janeiro de 2003, deixaram o Partido.
O nosso Congresso de 2005 rompeu com o etapismo, definiu a estratégia socialista da revolução e o caráter marxista-leninista do Partido. Colocámo-nos na oposição ao governo Lula e avançámos na reconstrução revolucionária, não como um processo que tinha prazo para acabar, mas sim como um longo caminho, que tinha muito para percorrer. Em seguida, realizámos a Conferência Nacional de Organização, em março de 2008, e o XIV Congresso do Partido, em outubro de 2009, que contou com a presença do PCM e do KKE, quando promovemos um importante Seminário Internacional e nos aliámos aos partidos que, na época, já estavam a construir a Revista Comunista Internacional, cujos primeiros números traduzimos e publicámos.