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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Estado de Emergência, Instrumento de Controle Social às Portas de uma Catástrofe.

Ángeles Maestro [*]

Após nove meses de pandemia, com os serviços sanitários outra vez à beira do colapso sem que se tenha tomado medida significativa alguma – que não seja o confinamento – para enfrentar uma situação absolutamente previsível e enquanto as expectativas vitais ruem nos bairros operários e para dezenas de milhares de pequenos e médios empresários, temos o direito de afirmar que a estratégia do governo central e de todos os governos autónomos, destina-se a utilizar todo tipo de instrumentos de controle social e de repressão contra previsíveis revoltas populares.


A resposta à crise: uma gigantesca destruição de capital ao serviço da oligarquia financeira e das multinacionais da energia.

 

Ainda não sabemos de onde surgiu o vírus, mas sabemos que antes que aparecesse já estavam acesos todos os alarmes do estalar de uma grande crise e que a situação social era explosiva em muitos países. No caso do reino da Espanha, "sendo um país rico, vive em situação de pobreza generalizada" afirmava em princípios de 2020 o Relator da ONU para a Pobreza. [1]

Como em todas as crises capitalistas – e esta é de proporções gigantescas – a destruição de capital segue seu curso arrasador varrendo maciçamente da cena pequenas e médias empresas. [2] Tal como ocorre nas crises, os bancos aceleram os processos de concentração com a compra a preço de saldo do pouco que resta da banca pública com a cumplicidade direta do governo, como foi o caso do Bankia e com os correspondentes despedimentos maciços, ao mesmo que se constituem em administradores do crédito procedente da UE.

Num cenário de empobrecimento maciço e de afundamento do modelo económico do turismo e do tijolo, quando urge abordar a reconstrução produtiva a partir de posições de soberania, a UE decidiu que as prioridades são a transição energética rumo a uma energia mais verde e rumo à digitalização. Essas são as condições para ter acesso aos 760 mil milhões de euros do fundo de recuperação europeu, ou seja, para assegurar aos bancos e às multinacionais o controle dessa prodigiosa quantidade de dinheiro, negando qualquer soberania. Tudo isto quando se está a destruir o pouco tecido industrial que resta e não é a contaminação ambiental o principal problema e quando a digitalização – em mãos do capital – servirá para intensificar a destruição de postos de trabalho. Ou seja, enquanto milhões de pessoas enfrentam a destruição maciça das suas condições de vida os bancos e as multinacionais, sobretudo as eléctricas e a da energia preparam-se para receber uma chuva de milhões.

Não se pode ocultar a ninguém que a rápida extensão da miséria é prelúdio de grandes explosões sociais. Também é evidente que o governo assiste impassível ao desastre que se vislumbra sem adotar as mínimas medidas para enfrentá-lo.

Uma catástrofe para a classe operária e para os setores populares frente ao qual não se tomaram as medidas mais imprescindíveis.

 

O estupor dos primeiros meses diante das duras consequências da epidemia deu lugar à constatação do fato inegável – exceto para aqueles que não só tapam a boca como também o cérebro – de que, enquanto se multiplicam os relatórios que revelam a causalidade essencialmente social da pandemia, nem o governo "progressista" nem os governos autónomos adoptaram medidas imperativas imprescindíveis, ainda que tivessem a capacidade legal para fazê-lo.

Nem me situo em teorias conspiratórias, nem falo de medidas revolucionárias.

Eis aqui alguns dados.

1º. No âmbito sanitário, o governo central e os autónomos:

Nenhum recurso – pessoal e instalações – do sector privado da saúde, da indústria farmacêutica ou das empresas que fabricam o material necessário, tais como respiradores, equipamento de proteção pessoal ou máscaras, foram envolvidos para os colocar ao serviço das necessidades mais urgentes da população. As requisições, intervenções e ocupações de empresas privadas estavam previstas nos artigos 8º e 13º do Real Decreto de Estado de Alarme do mês de março [3] e nenhuma delas foi então adoptada, nem ninguém fala delas agora, quando, segundo eles próprios, estamos a caminhar para um colapso sanitário.

Quando, desde o início da pandemia, falava-se de enormes carências de pessoal de saúde, não tomaram medida alguma – em 9 meses! – para convocar ofertas públicas de emprego com condições de trabalho dignas. Estas convocatórias deveriam servir para encorajar o regresso das dezenas de milhares de profissionais de saúde que emigraram após anos de contratos lixo ou para evitar, como está a acontecer, a cascata de baixas devido a depressão ou stress num sistema de saúde pública saturado.

Não estenderam realmente o direito à atenção sanitária às pessoas imigrantes sem papéis que continuam – apesar de acumularem todos os fatores de risco social – sem ter acesso ao cartão sanitário.

Os governos autónomos, com a cumplicidade do governo central, fizeram o possível para que todo o financiamento adicional que se dispôs para a saúde acabasse nas mãos de empresas privadas (Ribera Salud, Indra, Telefónica, Pascual, etc.), mediante a subcontratação de serviços diversos.

2º No âmbito social, o governo central:

Aprovou uma medida espetáculo, o Rendimento Mínimo Vital, cuja ineficácia dá uma ideia do que aconteceu noutros sectores. Após ultrapassar um labirinto burocrático, tarefa quase impossível para a imensa maioria das pessoas solicitantes, mais de 60% de quase um milhão de candidaturas foram recusadas. [4]

Os despejos não foram impedidos. Mais de um milhão de executados desde 2008 [5], e em plena pandemia, assiste impassível ao drama humano diário de deixar na rua as pessoas com menos recursos [5]. No Estado espanhol, ocorre um suicídio a cada 2,5 horas [6], grande parte deles devido a causas relacionadas com desemprego e despejos[7]. Entretanto, de acordo com números oficiais, existem 3,5 milhões de habitações vazias, com uma percentagem significativa em poder dos bancos que promovem os despejos.

Em 30 de Setembro vencia a moratória relativa ao pagamento de hipotecas, de alugueres e fornecimentos de água, luz e eletricidade contemplada em decretos anteriores [8]. O novo decreto de Estado de Emergência de 25 de outubro não o renovou, ou seja, os bancos e as grandes multinacionais da água, luz e eletricidade têm via livre concedida pelo governo que "não deixa ninguém atrás" para executar novos despejos e para cortar os fornecimentos de bens indispensáveis à sobrevivência daqueles que se afogam na pobreza e na doença. O pagamento só se adiou a partir de março e agora chegam os recebimentos de repente.

Não reforçou o sistema educativo, nem para garantir as mais elementares medidas de segurança, nem para permitir que o corpo discente dos bairros operários – afetado por quarentenas sucessivas – possa seguir as aulas virtualmente.

Depois de mais de 27 mil mortes de pessoas idosas não foram apreendidas as residências privadas convertidas em autênticos "lugares para morrer" graças a uma voracidade empresarial que atuou e continua a atuar em conivência com a passividade das administrações. O clamor popular reclamando ao governo uma lei que regule o sector não teve resultados [9].

Nada se fez para melhorar a situação de miséria dos pensionistas, sobretudo das mulheres, que além disso, em muitos casos, acabam por ser aqueles que financiam suas famílias. Mais de seis milhões de pessoas recebem pensões inferiores a 950 euros mensais. O dado brutal é que enquanto o número global de pensões aumentou, desde janeiro até outubro de 2020 o número de pensões mínimas sofreu uma importantíssima diminuição, exatamente 49.646. Este número quase multiplica por 10 a descida sofrida por este grupo em 2019, que foi de 9.195 pessoas. Sem dúvida, este dado reflete, mais uma vez, que a vulnerabilidade perante o covid não é a idade e sim a pobreza.

Não adotou medida alguma que obrigasse governos autónomos e municipais à melhoria do transporte público nas grandes cidades para evitar as aglomerações (em Madrid a frequência de passagem de comboios no metro em hora de ponta chega a ser superior a 10 minutos) que são, obviamente, os melhores caldos de cultura para a transmissão do covid 19. As condições em que se realiza o transporte desde os bairros operários, nos quais acumulam-se todos os fatores de risco, até o posto de trabalho onde reina o patrão e a segurança se subordina ao lucro, fazem com que as medidas preconizadas para evitar contágios pareçam uma caricatura macabra.

 

E enquanto isso, os meios de comunicação dedicam mais de 80% do seu tempo a propagar o medo à pandemia.

 

Rádios, jornais e televisões vomitam todas as horas dados e mais dados, a maioria incompreensíveis e carentes do mínimo rigor, enfeitados com análises de faladores de talk show e supostos peritos, todos na mesma direção. O resultado é a criação de sentimentos de pânico, de medo de ter a mais leve relação social e de insegurança perante tudo o que significa sair de casa, o que coloniza a cabeça de milhões de pessoas. Tudo isto sem que em tantas horas dedicadas ao tema haja qualquer informação sobre a situação em Cuba, Vietnã ou China, países onde a pandemia está sob controle e onde a população regressou às suas relações sociais normais.

Uma vez que todos os grandes meios de comunicação são propriedade, direta ou indiretamente, das mesmas multinacionais e bancos que gerem a crise em seu benefício, há poucas dúvidas acerca de que a criação de um estado de medo generalizado e de incentivo ao isolamento social é o ambiente mais propício para conjurar o mais temem: que a classe operária e os sectores mais populares deem um soco no tabuleiro.

O medo e a criação de uma psicose de guerra – as conferências de imprensa com militares e guardas-civis serviam diretamente esse objetivo – são o melhor instrumento para disciplinar as massas e para neutralizar, mediante a criminalização, qualquer desobediência ou resistência.

Se a isso acrescentarmos o discurso que a partir do governo "progressista" estende-se aos sectores populares inclinados à mobilização através dos seus caciques políticos e sindicais subvencionados, de que não se deve criticar o PSOE nem o Podemos, porque é pior que venha a direita, o controle social está garantido. As únicas mobilizações admissíveis são aquelas dirigidas contra os governos do PP.

Expediente de Regulacion Temporal de Empleo por Covid-19. Esse é o serviço fundamental prestado ao capital pelo Podemos e em geral pela auto-proclamada esquerda institucional: controlar o estalar da revolta social quando em janeiro acabarem os ERTEs e começar a cascata de empresas em bancarrota.

E a função já começou. Diante das brutais cargas policiais contra a juventude de Vallecas, com várias pessoas feridas e detidas, que mostrava sua consciência de classe frente à segregação imposta aos bairros operários ao gritar "menos polícia e mais cuidados de saúde", a Federación Regional de Asociaciones de Vecinos de Madrid, com forte presença do Podemos e da Izquierda Unida, enviou o seguinte twitee: Em Vallecas verificaram-se distúrbios aos quais as associações de vizinhos são alheias".

Nos últimos dias as mobilizações de jovens verificadas em várias cidades foram sancionadas pelo Podemos que as atribuiu à extrema-direita ou a posições negacionistas, avançando com a criminalização dos protestos e com a utilização da emergência ao serviço do controle social. Tudo isto numa tentativa de ocultar a evidência de que no momento em que a miséria e o desespero invadem milhões é precisamente a suposta esquerda institucional, débil e covarde que alimenta o fascismo.

 

A luta de classes não se confina

 

Todas as instâncias do poder, desde os aparelhos repressivos aos meios de comunicação, preparam-se para fazer frente a rebeliões sociais que sem dúvida irão ocorrer.

Quando a fome e o desespero estendem-se sem que, como argumentei, os governos adoptem sequer as medidas mais elementares para amenizá-las, não se pode cair no jogo daqueles que pretendem confinar a resistência e mobilização social através da criminalização.

É preciso que a partir de posições de independência de classe se desmascare a cumplicidade do governo "progressista! e dos seus agentes políticos e sindicais com a estratégia da oligarquia nacional e europeia, enquanto deixa afundar na miséria e no desespero milhões de pessoas da classe operária e pequenos e médios empresários condenados à ruína mais absoluta.

Neste momento não são suficientes críticas abstratas ao capitalismo ou às classes dominantes. Duas linhas de trabalho, intimamente conectadas, devem reger a ação destinada a enfrentar lucidamente o cataclismo que se avizinha.

Por um lado, é necessário "identificar qual é o elemento que mais "destrói" a esquerda e até a direita; qual é o elemento sobre o qual se pode acumular mais força em contrário e que, além disso, seja um pivô sobre o qual repousa todo do sistema; ou seja, aquele elemento que, se conseguirmos desprender-nos dele, teremos dado passos de gigante para acabar com o capitalismo. Este não é outro senão o capital financeiro, o qual urge excluir das nossas e contra o qual hoje entram em contradição a maioria dos sectores populares" [10].

É de grande importância que frente ao poder da banca, que objetivamente aniquila não só a classe operária como também pequenos e médios empresários, se possa construir uma aliança que impeça que este sector alimente as fileiras do fascismo.

Por outro lado, é decisivo que se ativem de maneira unitária espaços de organização e de mobilização, criando desde a base estruturas de poder popular, de defesa intransigente da vida em todas as suas facetas e de preparação para o duro período de confrontação de classe que está cada vez mais próximo.

[1] news.un.org/es/story/2020/02/1469232

[2] www.vozpopuli.com/...

[3] www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2020-3692

[4] confilegal.com/...

[5] afectadosporlahipoteca.com/...

[6] www.mscbs.gob.es/gabinete/notasPrensa.do?id=5006

[7] www.elsaltodiario.com/vivienda/relacion-suicidios-desahucios

[8] elderecho.com/l...

[9] marearesidencias.org/

[10] redroja.net/articulos/informe-politico-octubre-2020/

29/Novembro/2020

[*] Médica, dirigente da Red Roja.

Edição e tradução: Página 1917.

Fonte:https://redroja.net/articulos/el-estado-de-alarma-instrumento-de-control-social-a-las-puertas-de-un-cataclismo/

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